domingo, 10 de junho de 2012

Sejam bem vindos a bordo

O bonde pode ser um antigo meio de transporte urbano que fez tanto sucesso nas ruas brasileiras entre o século XIX e o século XX, mas no sentido figurado também significa grande quantidade. Pegar o bonde andando e sentar na janelinha normalmente é embaraçoso e dificulta a compreensão do assunto, por isso, antes de começarmos o blog, vamos entender mais sobre como esse transporte foi tão importante no momento de maior urbanização do Brasil. 

Despedida do bonde em Campinas - 1968
Despedida do bonde de Campinas em 1968. É possível perceber que o bonde já perdia espaço para os veículos como o fusca que se popularizavam.


 O primeiro bonde a ser visto em nossas ruas atravessou o Rio de Janeiro puxado por burricos em 1859. Pertencia à Companhia de Carris de Ferro da Cidade à Boa Vista, falida em 1866, depois de trocar a tração animal por vapor. Não tardou para a capital do Império entrar nos trilhos novamente. Em 9 de outubro de 1868, com Pedro 2º a bordo, a Botanical Garden Rail Road Company reinaugurou uma era. As grandes cidades não podiam ficar para trás.


Choque de gerações

Os bondes elétricos começaram a chegar em 1892, também pelo Rio de Janeiro, e mudaram radicalmente o cotidiano urbano. Poucas foram as capitais que não tiveram sua linha. Eram o passaporte para o mundo, mesmo que este se restringisse aos limites do município. Foram vistos com medo e admiração. Em O Bonde e a Cidade, o paulistano Oswald de Andrade narra: "Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde. Precisava pular."

Machado de Assis também não deixou passar em branco. Em 16 de outubro daquele ano, registrou nas páginas de A Semana:

"O que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade."


O progresso traz efeitos colaterais

O tal do bonde era um meio de transporte democrático. Em uma época em que poucos tinham carro, e outros preferiam deslizar sobre trilhos a sacolejar em ruas esburacadas, diversas classes sociais o compartilhavam. No Rio de Janeiro do início do século passado, propalava-se que a cidade não tinha uma rua sequer sem trilhos. O lema era: “Onde chega o bonde, chega o progresso.” Mas havia também os efeitos colaterais: as mulheres puderam, enfim, conhecer outras paragens - ainda que acompanhadas. Reações conservadoras não poderiam deixar de vir. A opinião é do jornalista França Júnior, no fim do século 19: "Se o impulso dado pelo bonde à nossa sociedade for em escala sempre ascendente, havemos de ver em breve as nossas patrícias discutirem política, irem à praça do comércio, ler os jornais do dia, ocuparem-se de tudo enfim, menos do arranjo da casa."

Nova tecnologia, novas palavras
O nome é coisa nossa - em Portugal, por exemplo, é eléctrico. A origem da palavra por aqui é controversa. Há quem defenda que vem do nome do cônsul norte-americano, empresário de bondes em Belém do Pará (James Bond). Outros sugerem que é derivado de Eletric Bond & Share, nome de uma das empresas que exploravam o serviço no Brasil. Mas a versão mais aceita é que viria dos bilhetes emitidos pela Botanical Garden Railroad no Rio, os chamados bonds - títulos de dívida, em inglês.
Outras palavras ficaram, e expressões criadas na época vingaram. Algumas delas:

Condutor Cobrador.
Mortorneiro Motorista do bonde.
Pongar Subir no bonde sem que este pare.
Almofadinha Virou sinônimo de frescura, excesso de arrumação. Como os bancos do bonde eram de madeira, alguns levavam sua almofadinha para ter uma viagem mais tranquila.
Andar na linha (do bonde) Ser correto e sincero nos negócios.
Comprar um bonde Cair no conto do vigário. Fazer mal negócio.
Pegar o bonde andando Entrar no meio de uma situação ou conversa em andamento.
Perder o bonde da história Perder-se no contexto de algo.
Tocar o bonde Levar algo adiante.
Tomar o bonde errado Ver frustrados os intentos.
Trombada Nos anos 1920, um elefante fugiu do circo e derrubou um bonde com a tromba. A palavra virou sinônimo de colisão.

Ainda há lugar para saudosismos
Por cerca de 50 anos, os bondes dividiram as ruas com outros veículos. Em São Paulo, 1911, foi construído o primeiro ônibus brasileiro. Por volta de 1920, com o petróleo mais barato que a eletricidade, o Brasil começa a importar jardineiras dos Estados Unidos. Seis anos depois, apenas na capital paulista, elas já passavam de 400 unidades. O bonde foi perdendo espaço; a pressão das empresas de ônibus, aumentando. A Light insinuou desistir dos bondes, mas um decreto de Vargas, em 1937, a obrigou a prosseguir. Rio de Janeiro (1963), São Paulo (1968) e Santos (1971) foram as últimas cidades a aposentá-los.

A última viagem do Camarão, que saiu da Vila Mariana em 26 de março de 1968 em direção a Santo Amaro, foi motivo de comoção entre os paulistanos. Em marcha lenta, seguido por automóveis, ele fez o último percurso. A revista O Cruzeiro registrou:

"Para uma despedida, até que foi uma festa bonita. O bond criou moda: motorneiro que se prezasse tinha quase a obrigação de deixar crescer o bigode, para combinar com o uniforme escuro; e o bonito era o rapaz pular do bonde andando, na ladeira da Augusta."


Que o tempo dos bondes passou, restam poucas dúvidas. Mas ainda há espaço para saudosismos. Cidades como Belém, Manaus e Belo Horizonte planejam reativar suas linhas para aproveitar o potencial turístico. Juntam-se a outras cidades brasileiras que fazem dos velhos bondes uma oportunidade de trazer o passado à tona e se esbaldar nas lembranças.



Vá de bonde
Em São Paulo

Pequeno trajeto sai do Museu do Imigrante, no Brás, e relembra a história dos bondes na cidade. Bonde aberto, movido a gasolina.

Em Campos do Jordão

Linha turística com oito quilômetros. O bonde é fechado, providencial para os dias mais frios.

Em Campinas

Trajeto turístico, de quatro quilômetros, no Parque Portugal. Bonde aberto.

Em Belém

Linha pronta, bonde restaurado. Mas no caminho estão 180 ambulantes, que não permitem a passagem pelo centro.

Em Santos

Três bondes fazem um circuito de 1,7 quilômetro pelo centro histórico. Guias acompanham o trajeto. Dentro do programa Vovô Sabe Tudo, antigos motorneiros contam histórias dos tempos áureos.

No Rio de Janeiro

O bonde de Santa Tereza é o único no Brasil que nunca deixou de circular, desde sua inauguração, em 1896. É um dos símbolos da cidade, deslizando sobre os arcos da Lapa em direção a um dos lugares mais agradáveis da capital fluminense. Ainda assim, sofre com a falta de cuidados. Dos 14 carros, apenas quatro estão em circulação. Todos os sábados, às 10h e às 14h, acontece um percurso cultural de duas horas, passando pelos diversos museus do bairro, com acompanhamento de uma guia. Uma das paradas é no Museu do Bonde, que funciona junto à oficina de restauração. Vale a pena conferir.  


Escrito por Mariana Albanese   
Acessado em Almanaque Brasil